quinta-feira, 17 de março de 2016

Reportagem: O mundo paralelo dos taxis

Uma licença para conduzir um táxi é cara? Em Lisboa, se a conseguir por via de um concurso público, não chega a gastar 500 euros. Se não puder esperar resta-lhe entrar nos sites de anúncios e gastar 252 vezes mais. E se os concursos estabelecem regras para evitar a concentração de licenças no mesmo proprietário, no mercado livre ninguém controla. Há 166 empresas que apresentam a mesma morada ao IMT e histórias recorrentes sobre 'caça-viúvas'.
Cento e dez mil euros. Licença/Alvará Táxi Lisboa valor fixo, não respondo a sms nem emails.” Ricardo, dos Olivais, também tem uma licença para transporte de táxi em Lisboa à venda. O preço está acima do do colega não identificado: 120 mil euros. Tal como no primeiro caso, o táxi não está incluído. Se o interessado quiser o seu Volkswagen Caddy, de 2012, com 7 lugares, terá de investir mais 10 mil euros. Dentro de Lisboa só há um preço mais amigo: nos Olivais, na zona oriental da cidade, há uma licença à venda por 95 mil euros, preço não negociável. O carro? Também não está incluído “pois teve um acidente”. Os três anúncios estão disponíveis no OLX, o site que se transformou na montra do mercado paralelo dos táxis: há cerca de 50 anúncios ativos para venda de licenças (imprescindíveis para estar habilitado a conduzir um táxi), com preços entre os 7 500 e os 120 mil euros, consoante a zona do País. Lisboa é a zona mais cara, Vila do Porto, na ilha de Santa Maria, nos Açores, a mais barata.
Obter uma licença para ser dono de um táxi custa assim tanto? Não. Com os 120 mil euros pedidos em sites virtuais seria possível comprar nada mais, nada menos, do que 252 licenças em Lisboa, onde cabe à Câmara Municipal a abertura de concursos públicos para distribuir novas licenças. No máximo, indo por essa via, o custo total de uma licença na capital não ultrapassa os 476,70 euros: 90 euros de taxa de pedido de emissão de alvará (a pagar ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes), 15,10 euros de taxa de pedido de admissão a concurso e 371,60 euros de taxa de emissão de licença (a pagar à Câmara Municipal).
As empresas de táxis e as associações de taxistas dizem haver táxis a mais a circular em Lisboa. Para limitar o número de carros em circulação o município responde abrindo apenas ocasionalmente concursos para emissão de licenças. E mesmo esses não costumam decorrer de forma pacífica. O último, terminado em 2010, e que atribuiu 50 novas licenças para táxis adaptados ao transporte de pessoas com mobilidade reduzida, terminou com cisões dentro da maior associação de taxistas, a Associação Nacional dos Transportadores em Automóveis Ligeiros (ANTRAL).
Francisco Pereira, ex-diretor para as relações externas da ANTRAL, não gostou de ver Florêncio de Almeida, presidente da associação, a apresentar candidaturas ao concurso quando havia sido o primeiro a contestar publicamente o facto de essas licenças permitirem não só o transporte de deficientes mas também o serviço normal de passageiros, vindo assim sobrecarregar ainda mais o mercado. “Nunca fui a favor, mas se o concurso é aberto não vou deixar fugir o que me pertence. Se soubesse o que era tinha concorrido o meu genro, a minha nora, os meus netos e até as cadelas. Este concurso foi impugnado e investigado porque toda a gente dizia que tinha sido beneficiado. Não fui. Só não concorreu quem não quis”, disse à VISÃO, em outubro, Florêncio de Almeida. O concurso teve 148 participantes. O presidente da ANTRAL conseguiu três licenças.
166 LICENÇAS, A MESMA MORADA
As regras deixam apenas duas opções a quem quiser dedicar-se ao negócio: trabalhar para uma empresa que já tenha uma licença; ou desembolsar quantias astronómicas no mercado paralelo, garantindo avultadas margens de lucro aos vendedores e zero cêntimos de encaixe aos municípios. O resultado? Há meia dúzia de empresas que dominam o mercado. Num cenário onde, queixam-se os motoristas de táxi, florescem os 'caça-viúvas', como se chama na gíria aos taxistas que captam as licenças de outros após a sua morte, por intermédio das viúvas que procuram ajuda para dar um novo rumo ao negócio. Não há taxista que não conheça a expressão. Nem quem faça propriamente segredo sobre o método. Captada a licença restam duas opções, ambas vantajosas: usá-la para colocar mais um táxi a circular e a gerar receitas; ou desfrutar da escassez de concursos, vendendo por preços mais altos e encaixando o lucro.
Apesar de as autarquias desenharem os concursos públicos com regras precisas para evitar concentrações de licenças no mesmo proprietário e favorecer a concorrência, a VISÃO analisou os registos disponíveis no site do IMT, o instituto que regula a atividade do transporte em táxi, e descobriu vários casos de multiplicação de empresas na mesma morada. O nº 4A da Rua Padre Américo não é um simples apartamento da freguesia de Carnide, em Lisboa. É a morada onde estaciona o maior número de empresas de transportes de táxis registadas no IMT: ao todo, 166 registos, num total de 1200 empresas licenciadas no concelho de Lisboa. A Padre Américo é a morada de registo da Táxis Bom Regresso, da António Joaquim da Fonseca, Ldª., da Aurora Garção & Filha, da Auto Táxis da Portela do Fojo, da Auto Aldeia das Flores, da Auto Táxis Carequinha Unipessoal, da Auto Táxis Boa Vida ou da Auto Táxis Boa Sorte.
A seguir à morada recordista, o endereço que mais se repete naquela lista é o nº 31A do Alto do Carvalhão (também em Lisboa), com 83 alvarás distribuídos por empresas como a Auto Progresso do Nabão, a Auto Táxis Benfeitense, a Auto Táxis Bucho ou a Sociedade de Táxis Estrela Lisbonense.  Há ainda casos de empresas que partilham os mesmos acionistas e de gerentes comuns a uma dezena de empresas. A VISÃO perguntou ao IMT, entidade responsável por regulamentar a atividade, como justifica a concentração de empresas na mesma morada e que medidas têm sido tomadas para assegurar que as regras de atribuição dos alvarás e da emissão de licenças estão a ser cumpridas, mas não obteve respostas.
O presidente da direção da ANTRAL avançou com possíveis explicações. A concentração na mesma morada explicar-se-á porque essas moradas serão a sede de empresas de contabilidade e “muitos industriais, na sua quase totalidade micro empresas, para facilitar o cumprimento das suas obrigações legais, nomeadamente fiscais, estabelecem as respetivas sedes no escritório das empresas de contabilidade”. A VISÃO confirmou que naquelas moradas estão sediadas empresas de contabilidade. Mas taxistas que pedem o anonimato garantem tratar-se de um truque para esconder a concentração de licenças no mesmo proprietário. “Seria mais difícil inventarem várias moradas. Não acha estranho que 166 venham ter aos mesmos contabilistas?”
Sobre os preços das licenças em sites de anúncios classificados, Florêncio de Almeida resume a discrepância ao resultado “do funcionamento dos mecanismos da oferta e da procura” e recusa falar em “mercado paralelo”: “Se até 1998 as licenças de táxi eram um bem fora do comércio, que só em circunstâncias muito especiais poderiam ser transacionadas” desde então “podem ser livremente transacionadas”.
A associação invoca “a livre comercialização de bens e serviços” para explicar porque razão não tem tomado medidas para favorecer a concorrência ou para travar os preços abusivos. “No entanto, quando as autarquias solicitam o nosso parecer sobre os critérios de atribuição de licenças, a ANTRAL faz notar que, neste subsetor dos transportes, constituído por micro empresas em que, na esmagadora maioria dos casos, o titular da licença só tem uma viatura que ele próprio conduz; só o próprio industrial e simultaneamente motorista é que poderá assegurar a prestação continuada de serviços, para melhor servir os munícipes.” Na entrevista dada à VISÃO para um perfil publicado em novembro, Florêncio de Almeida não escondeu já ter beneficiado com o mercado que prefere não apelidar de 'paralelo'. Um bombeiro e motorista de táxi ter-lhe-á pedido ajuda para renovar um alvará, depois de esgotados todos os prazos legais. O presidente da ANTRAL conseguiu a renovação e terá decidido vender a licença, por 75 mil euros, sem qualquer ganho para o anterior proprietário. “Ele tinha-me dito para eu fazer o que quisesse.” (texto da jornalista da Visão, Sílvia Caneco,com a devida vénia)

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