sábado, 13 de fevereiro de 2016

Reportagem Visão: Internet: O fenómeno da multiplicação da morte

É como se, de tempos a tempos, houvesse uma espécie de amnésia coletiva que nos faz voltar a lamentar a morte de pessoas que já morreram há muito, muito tempo. A experiência já lhe deve ser familiar: deslizamos pelo ecrã para saber o que aconteceu a amigos, ao país e ao mundo, e eis que surgem títulos emotivos que nos anunciam a morte de alguém famoso. Mas se, depois, clicamos para saber o que aconteceu, descobrimos que aquela pessoa morreu, sim, mas... muito antes daquele momento.
O efeito é igual ao da mentira tantas vezes repetida que se torna realidade: afinal, vivemos todos envolvidos no imenso turbilhão das redes sociais, sempre a gritarem para ser alimentadas - as estimativas apontam para 500 milhões de tweets por dia, 30 mil milhões de posts no Facebook por mês, 300 horas de vídeos carregados para o YouTube, a cada segundo.
Num instante, qualquer disparate pode tornar-se popular nos Facebooks da nossa vida. Daí a haver notícias de mortes a serem ressuscitadas anos depois é um passo hoje, parece que há celebridades que estão sempre a morrer, uma e outra vez.
Nas últimas semanas, foram as atrizes Esther Williams (1921-2013) e Audrey Hepburn (1929-1993) esta última com direito a notícia no diário espanhol El País e tudo a despedirem-se do mundo outra vez. E não, o fenómeno não é de 2016. Em maio de 2012, a morte de Vasco Granja, divulgador de animação e banda desenhada, voltou a circular. Num ápice tornou-se viral, e atingiu o top das notícias mais vistas dos sites noticiosos do País. Há poucas semanas, a mesma notícia voltou a entrar num desses tops e a fixar-se no meio da tabela. O mesmo sucedeu com o astronauta Neil Armstrong ou o músico Ravi Shankar. Segundo a BBC, por terras de sua majestade a preferência vai para os atores Leslie Nelson, de Onde Para a Polícia?, desaparecido em 2010, e Peter Falk, celebrizado como detetive Columbo, que se despediu em 2011.
O fenómeno das notícias ressuscitadas acontece também com personalidades vivas. Lembra-se da madrugada recente em que se soube que o treinador Julen Lopetegui ia deixar o FC Porto? Em minutos, começou a circular um artigo garantindo que José Mourinho, que se sabia ter acabado de sair do Chelsea FC, fora contratado pela SAD dos azuis e brancos durante duas épocas e meia. Os adeptos portistas quase rebentaram de euforia. Durou pouco tempo. A notícia, afinal, tinha 14 anos.
O CAOS NAS REDES SOCIAIS
É um fenómeno que, quem se interessa por este mundo da tecnologia, procura compreender. Para o especialista da BBC, Rory Jones, é como se a Teoria do Caos, essa lei presente em quase tudo o que nos rodeia, resolvesse mostrar do que é capaz nas redes sociais. A ideia central é que uma pequenina mudança num determinado acontecimento pode trazer consequências enormes e desconhecidas no futuro. Quando o meteorologista Edward Lorenz descobriu o fenómeno, nos anos 1960, aludiu à imagem do efeito-borboleta - o bater das asas de uma borboleta no Japão provocaria, tempos depois, um tufão em Nova Iorque. Com o tempo, os cientistas conferiram que esta Teoria do Caos se aplicava a quase tudo, do ritmo dos batimentos cardíacos às cotações da bolsa de valores.
Quando o matemático Benoit Mandelbrot se lembrou de lhe juntar as fórmulas dos fractais, o enigma parecia resolvido: o caos está basicamente na essência de tudo, moldando o Universo.
Vivendo nós na galáxia da internet, como profetizou o sociólogo espanhol Manuel Castells, não demorou a que este mimetismo se aplicasse às redes sociais, numa espécie de "ora agora anuncias tu uma morte, ora agora anuncio eu". Oiça-se Paulo Frias, professor do Centro de Ciências de Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto: "Estes fenómenos resultam de uma leitura superficial, por quem não chega a entrar numa camada mais profunda do acontecimento e o partilha de imediato. É então que tudo se mistura, como se as mortes fossem todas aqui e agora." Para o também diretor da licenciatura e mestrado de Ciências da Comunicação, nada disto se passa ao nível do consciente, está mais ligado à instantaneidade da informação que circula, "de mastigar e deitar fora".
Este fenómeno é uma tendência e a seleção do que se passa nas redes sociais acentua isso. No Snapchat, por exemplo, as publicações duram apenas 24 horas. "Depois disso, desaparecem. É um paradigma muito diferente de gestão do tempo e do espaço." Trata-se, continua Paulo Frias, da versão tecnológica e digital do culto do efémero. "Se quiser ir ver o histórico, nem sequer consigo." Vivemos apenas no "aqui e agora".
As pessoas pedem um consumo instantâneo e têm-no. O Facebook, recorda o professor do Porto, agora tem ainda outro expediente: passa a vida a recordar-nos do que nos aconteceu há um, dois, cinco ou mais anos... na expetativa de que o republiquemos, ressuscitando pedaços do nosso passado, como se fossem atuais.
Claro que depois há quem não resista a brincar sobre esta mania de se carpirem, repetidamente, falecimentos. É como se houvesse "uma meia maratona dos óbitos na cronologia do Facebook", ironiza o ator Miguel Guilherme, na rubrica Não É mau, que assina na rádio TSF. Para depois acrescentar que, às vezes, parece mesmo que anda "tudo a ver quem consegue partilhar o maior número de mortes possível". A brincar, a brincar...
Não caia nessa
Acredite que é possível não ser apanhado por estes feitiços do tempo, como se os dias - ou melhor, as notícias e mortes - se repetissem outra vez. Assim, antes de partilhar:
LEIA ATÉ AO FIM...
Quem escreve quer ser lido. Como tal, serve-se de efeitos que enganam o cérebro para nos levar a clicar e, como pretendido, a ler. Assim, se o assunto lhe interessa, faça-o: é a única forma de confirmar se o que está escrito é mesmo o que lhe parece à primeira vista. E se depois decidir (re)publicar, já sabe exatamente do que se trata.
... E CONFIRA A DATA
Ouvimos, de fugida, que morreu alguém importante, fazemos uma pesquisa e logo o Google nos sugere uma série de resultados. Tudo certo, todos terão de facto já morrido. Mas algumas dessas notícias serão mais atuais do que outras. Assim, veja se o que está prestes a partilhar é mesmo de 2016 ou se já anda a circular, e a gerar confusão, há algum tempo (Visão, reportagem da jornalista Teresa Campos)

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