O Expresso revela o parecer em que Calvão da Silva,
agora indicado para ministro da Administração Interna, defendeu a idoneidade do
antigo líder do BES. Os €14 milhões que o construtor José Guilherme deu a
Ricardo Salgado foram um presente dada “ao amigo de longa data” que não punha
em causa a “gestão sã e prudente” do banco
“O espírito de entreajuda e solidariedade” é um
princípio geral de uma sociedade e Calvão da Silva considera que “é natural,
pois, que um amigo possa e tenha gosto em dar sugestões, conselho ou
informações a outro amigo", sendo que "não é a circunstância de ser
administrador ou presidente executivo de um banco que o priva dessa liberdade
fundamental”. E se alguém decide dar dinheiro de presente (liberalidade) em
reconhecimento desse conselho, como José Guilherme deu a Ricardo Salgado, isso
não põe em causa a idoneidade de quem recebe.
Assim escreve João Calvão da Silva (ver perfil aqui),
que aceitou esta semana ser ministro da Administração Interna do novo governo
de Pedro Passos Coelho. Mal a indicação foi conhecida, logo o Bloco de Esquerda
ligou o nome do jurista ao processo de Ricardo Salgado, por ter emitido um
parecer defendendo a idoneidade do então líder do BES junto do Banco de
Portugal. O Expresso, que no âmbito da sua investigação jornalística, publicou
dezenas de documentos oficiais relevantes para o processo, revela hoje o
parecer em causa, que pode ler na íntegra aqui.
O parecer é de novembro de 2013, numa altura em que a
"guerra" dentro da família Espírito Santo já se tornava pública, em
que estava a ser vendido papel comercial do Grupo Espírito Santo em larga
escala mas ainda se desconhecia o falseamento das contas do Grupo Espírito
Santo (embora fosse nesse mês que o Banco de Portugal soubesse, mas não
tornasse público, dos indícios desse "buraco"). O parecer é emitido
por causa de outro assunto: depois das notícias de que Ricardo Salgado havia
recebido dinheiro do construtor José Guilherme, no valor de €14 milhões de
euros, o Banco de Portugal questionava a idoneidade do banqueiro. Salgado
recorreu então a dois pareceres externos, um deles de Calvão da Silva.
A defesa de Salgado: os amigos de longa data
Para perceber o parecer de Calvão da Silva é preciso
relembrar a argumentação de Ricardo Salgado para justificar ter recebido o
dinheiro. Recusando tratar-se de uma comissão por serviços de consultoria,
Salgado disse que se tratava de uma liberalidade: um presente.
Segundo a defesa de Salgado, citada no parecer, José
Guilherme era “um amigo de longa data a quem nas suas conversas foi dando
alguns conselhos e opiniões sobre a evolução da economia e dos mercados a
respeito de algumas decisões que quis tomar”. Na crise de 2008, falando com
José Guilherme, “por amizade o dissuadiu” de investir na Europa de Leste,
nomeadamente na Bulgária, e em vez disso “o aconselhou a apostar em Angola”.
Nesse campo, deu-lhe “sugestões quanto à forma de abordar esse mercado e
entidades a contactar”.
Ora, diz o parecer, invocando a tese da defesa de
Salgado, José Guilherme “teve enorme sucesso em Angola” e, depois, “tomou a
iniciativa de se lhe dirigir, afirmando de modo categórico que queria ter para
com ele uma atenção, pela ajuda preciosa que lhe dera". Após "reiterada
insistência" de José Guilherme, Salgado "decidiu consultar dois
juristas externos ao Banco [Espírito Santo], tendo estes assegurado que a
questão era do foro pessoal e não colidia com quaisquer regras legais ou
éticas”, além de que “nenhuma relação existiu entre a oferta e a relação deste
com o Banco”. Finalmente, o “montante da oferta foi incluído da declaração de
IRS”, diz o parecer, embora não refira que só o foi depois de várias
retificações por parte de Salgado: não constava na declaração incial entregue
às Finanças. "A oferta resultou de uma liberalidade em razão dos seus
conselhos, orientações e ajudas dadas a título pessoal e de amizade, nunca a
título profissional”.
É pessoal, ninguém leva a mal
“Como a liberalidade foi por conselho dado a título pessoal,
fora do exercício das funções e por causa das funções de administrador
bancário, não se vê por que razão censurar a sua aceitação, muito menos que
possa constituir fator relevante na decisão de registo sob o prisma de uma
idoneidade necessária a uma gestão são e prudente da instituição de crédito”,
escreve Calvão da Silva.
O parecer destaca que a avaliação de idoneidade pelo
Banco de Portugal visa “assegurar uma gestão sã e prudente da instituição,
tendo em vista, de modo particular, a segurança dos fundos a ela confiados”,
bem como ver da capacidade do banqueiro “para decidir de forma ponderada e
criteriosa”, da tendência para cumprir obrigações e de não ter comportamentos
incompatíveis com a preservação da confiança do mercado.
Considerando que “nenhuma dúvida séria e consistente”
põe em causa que “a lente exigida na lei na apreciação da idoneidade é a de
gestor criterioso e ordenado”, Calvão da Silva refere que “não é, pois, a um
ato isolado” que a lei se refere, mas sim “ao modo habitual da gestão dos
negócios ou do exercício da profissão”, pelo que “não pode o Banco de Portugal
deixar de considerar preenchido o requisito de idoneidade dessa pessoa indicada
para administrador e aceitar o seu registo”. No caso, Ricardo Salgado.
Calvão da Silva cita vários acórdãos, a Constituição e
diretivas europeias. E fundamenta que “se o conselho de amigo de longa data de
ir para Angola e não para a Bulgária exercer a profissão no setor imobiliário
que exercia em Portugal se revelou certeiro e propiciou resultados lucrativos
no exercício dessa profissão, nada impede a liberalidade feita ao amigo”. Além
disso, “o conselho havia sido dado por amizade, sem vínculo jurídico algum,
muito menos ao abrigo de contrato de consultoria por investimentos”.
Código de Conduta do BES? Tudo ok
Além de cumprir a lei, a liberalidade aceite por
Salgado “não viola em nada o Código de Conduta do grupo [Espírito Santo],
justamente por ser totalmente alheia à atividade profissional de administrador
do grupo”. É assim, mesmo que o Código de conduta do BES proibisse a aceitação
de “qualquer tipo de remuneração ou comissão por operações efetuadas em nome do
grupo” ou de “presentes, convites, favores ou benefícios semelhantes” se
relacionadas com a sua atividade profissional no grupo”.
É tendo em conta estes argumentos que, no parecer,
João Calvão da Silva defende “a não perda de idoneidade do administrador em
causa”.
Recorde-se que Ricardo Salgado nunca chegou a perder o
estatuto de idoneidade durante o exercício das suas funções. Demitiu-se quando
ainda a mantinha, em julho de 2014, oito meses depois da emissão deste parecer.
Calvão da Silva deverá tomar posse na sexta feira como ministro, sendo que
poderá não chegar a exercer funções efectivas, pois prevê-se o chumbo na
Assembleia da República do programa do governo, levando à sua queda (texto dojornalista do Expresso, Pedro Santos Guerreiro)
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