A
Volta a Portugal acabou, mas eles vão andar por aí. Eles que pedalam e sofrem
durante o ano inteiro e não somente neste agosto que parece o único mês em que
nos lembramos deles. Porque o ciclimo é feito por gente que ganha mal e paga em
dor por um espetáculo de sacrifício: manda a União Ciclista Internacional (UCI)
que o ordenado mínimo de um corredor seja de mil euros por mês, mas esse valor
nem sempre é cumprido. “Muitos vivem com o ordenado mínimo”. Cândido
Barbosa é de dois tempos: do tempo em que se podia ser ciclista, já lá vai uma
vida, e do tempo em que deixou de se poder ser. E esse tempo foi há tão pouco
que Cândido consegue emparedá-lo em duas datas com quatro ou cinco anos dentro
delas. Entre 2007 ou 2008 — Cândido não sabe precisar — e 2011, as coisas
mudaram para pior, porque nisto das crises não se avança para melhor, por mais
histórias de boa vontade que se contem. E, voltando a Cândido, entre 2007 ou
2008 — num desses dois anos que não sabe precisar — e 2011, passou a levar para
casa metade do que costumava levar. “Houve um corte de 50% na média dos salários”,
diz o antigo corredor. Cândido
ganhava bem para a época, 50 mil euros brutos por ano, o que dava 4 mil euros
brutos por mês durante os 12 meses. E tinha contrato, como outros que tivera
antes e que lhe haviam permitido sair da casa dos pais aos 23 anos, casar-se,
ser ele próprio pai de dois filhos e construir a sua casa em Paredes. Hoje, diz
Cândido, um ciclista sub-30 não pode ter família e contrair um empréstimo para
comprar um apartamento. Hoje, o ciclista vai ficando pela casa da família,
enquanto esta o sustenta e ele espera pelo dia em que se poderá financiar —
acontece que esse dia pode nunca chegar.
A
GERAÇÃO MIL
O
ciclismo em Portugal não é a cor que se vê na RTP na Volta, que acabou este
domingo em Lisboa. É um lugar cinzento, de salários baixos e sacrifícios altos,
como a Senhora da Graça ou a Torre. Manda a União Ciclista Internacional (UCI)
que o ordenado mínimo de um corredor seja de mil euros por mês, mas esse valor
nem sempre é cumprido, ora porque se paga por recibos verdes e a retenção na
fonte e a contribuição para a Segurança Social o cortam às postas, ora
porque... a equipa nem sempre paga. “Eu cheguei a ter conhecimento de
corredores que tinham acordado ganhar mil euros e depois só recebiam 750”,
lembra Cândido Barbosa. Nestes
dias, as coisas não estão diferentes, e Marco Chagas fala delas com a distância
de um comentador televisivo que já foi ciclista. Fá-lo comedido, porque o
dinheiro é uma coisa íntima, como a roupa coçada que se usa debaixo da farpela
de domingo e que se mostra apenas a quem se confia. “Do que sei, sei que muitos
vivem com o ordenado mínimo. E esta é uma profissão de risco, uma carreira
curta. Mais do que isto, os ciclistas jovens vivem em casa dos pais e adiam a
emancipação, porque não conseguiriam viver sozinhos.” Os
profissionais pagam a alimentação, os suplementos de nutrição, muitas vezes os
treinos — e recebem em dor. Para Chagas, é como voltar às bicicletas de ferro
no tempo das ligas leves de carbono ou kevlar. “Eu também passei por muito e
precisei dos meus pais durante algum tempo. O meu primeiro ordenado foi de 700
escudos por mês, veja lá bem. A modalidade está em risco”, lamenta Marco
Chagas.
IR
PARA FORA
Um
homem só pede ajuda a outro homem se não tiver outro remédio. A Joaquim
Andrade, presidente da Associação Portuguesa de Ciclistas Profissionais, não
lhe chegam pedidos, apenas rumores. “É o diz que disse”, diz ele, que vai
ouvindo algumas histórias por aí. Como aquela do diretor desportivo que fugiu
com o dinheiro antes de uma grande prova ou a dos ciclistas que vão às poupanças
para pagar contas correntes quando não recebem o que lhes é devido. “600 ou 700
euros por mês para gente que tem família e filhos... Não está fácil, como há de
perceber. Estamos um bocadinho melhor nestes últimos dois anos, mas o que se
ouve por aí é isto: ‘Ah, isto está mau, isto está mau...’” Os
ciclistas mais velhos sujeitam-se porque não têm outra coisa e os mais novos
porque querem outra coisa. Querem ser como o Rui Costa, que está na Lampre, ou
o Tiago Machado, da Katucha, ou o Sérgio Paulinho, da Tinkoff. “É isso que lhes
dá motivação e os faz competir e arriscar o futuro.” Mas nem todos podem ser o
Rui ou o Tiago ou o Sérgio, e Portugal caminha para o fim da classe média.
“Antigamente”, relembra Cândido, “os ciclistas medianos ou mesmo os fracos, que
estavam lá só para ajudar o chefe de fila [o líder da equipa], conseguiam ter o
seu dinheirinho e poupar. Agora, só mesmo a elite aguenta, e essa quer logo ir
para fora de Portugal.”
SÓ
A VOLTA INTERESSA
Para
o português comum, o ciclismo em Portugal é a Volta. É e não é. No calendário
da Federação Portuguesa de Ciclismo estão 60 provas de estrada, que se disputam
entre fevereiro e outubro (novembro é uma espécie de Entrudo, onde vale tudo;
dezembro e janeiro é o momento de cortar gordura), mas o que realmente
interessa é a Volta. Para quem compete e para quem vê. “E nessa altura”,
ironiza Joaquim Andrade, “aparecem sempre uns iluminados com mil e um projetos
e ideias que desaparecem logo que a corrida acaba”. A
crise e o doping afastaram os patrocinadores, e o ciclismo, que não é capaz de
gerar receitas, afasta-se de si próprio — desacelera e trava. Andrade avança na
conversa com soluções que vê no estrangeiro. “Já se exploram os direitos de
imagem dos ciclistas e paga-se um ‘x’ pelas câmaras nas bicicletas.” Andrade
não parece muito convicto. O problema português é que o ciclismo não aguenta os
Cândidos, os Chagas ou os Joaquins Gomes destes tempos. Dantes, mesmo sem
luzes, havia estrelas; agora, nem umas nem outras” (texto do jornalista do
Expresso, Pedro Candeias, com a devida vénia)
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