Há algum tempo que
venho a ser alvo de um novo tipo de delito, que tarda em ser reconhecido pela
lei portuguesa: o assédio fiscal. O assédio fiscal consiste em receber quase
todos os meses na minha caixa de correio electrónico — e às vezes na minha
caixa de correio postal — uma acintosa mensagem das Finanças aconselhando-me a
pagar dívidas em atraso, para evitar temíveis e abarbaradas “medidas de
coerção”.
Tenho um velho
conflito com o fisco relacionado com questões de direitos de autor e
correspondentes benefícios fiscais. Tudo se resume ao facto de durante muitos
anos eu desconhecer o talento da Autoridade Tributária na área da crítica
literária. Mas esse talento existe, e não é pequeno — e após uma fina análise
hermenêutica de algumas crónicas que lhe apresentei, a AT concluiu tristemente
que a minha prosa estava carente de “efeito estético” e que se mostrava incapaz
de proporcionar “uma sensação de prazer e emoção no receptor”. Pior: como se já
não bastasse a acusação de impotência literária, tal inépcia traduzia-se na necessidade
de devolver uns bons milhares de euros ao fisco.
Quando recebi tão
lutuosa notícia passei mal durante várias semanas, porque por muita força
psicológica que uma pessoa tenha não é fácil esmoer uma acusação de
incapacidade para produzir “sensações de prazer”, mesmo que oriunda do
ministério das Finanças. Mas assim que me recompus do trauma, avancei para
tribunal contra o Estado, onde ainda aguardo atendimento (já lá vão três anos e
nem sequer cheguei à primeira instância). Claro está que, tendo em conta a
bonita prática de inversão do ónus da prova em matéria fiscal, fiz aquilo a que
a lei obriga: apresentei caução do valor em dívida acrescido de 25%. E aguardo,
paciente e esperançado, que a justiça possa restituir a minha honra e a minha
voluptuosidade.
Infelizmente, o fisco
não compartilha desta paciência, e continuo a receber com regularidade os já
clássicos mails “Dívidas fiscais — recomendação de pagamento”. E logo em dose
dupla, porque apesar de a minha mulher não ter nada a ver com o assunto, tem o
azar de estar casada comigo, e apanha por tabela. Já pedi aos senhores do fisco
para pararem com isso, explicando-lhes que o processo está em tribunal, que
apresentei uma caução que eles próprios aceitaram, que os mails são irritantes,
que a minha mulher é inocente. Mas eles não param. É “o sistema informático”,
dizem. O sistema informático das Finanças é um predador fiscal.
Mais: o sistema
informático é profundamente imbecil. Porque, como se já não bastassem os mails,
eis que no outro dia recebo uma carta a informar-me que o meu nome iria ser
incluído na “lista de devedores tributários para inclusão na internet”. Se
quisesse evitar que tal acontecesse, estava obrigado a “apresentar elementos”
que obstassem à inclusão na lista negra. Esta carta era oriunda do meu serviço
de finanças, o mesmo que está a gerir todo o processo e aceitou a minha caução.
Ou seja, o serviço de finanças que aceitou a minha caução exigiu que eu
informasse o serviço de finanças que aceitou a minha caução de que ele tinha
aceitado a minha caução. Porquê? Ora essa, por causa do “sistema informático”.
Vamos cá ver: convém haver limites para a estupidez e para o assédio fiscal. Eu
celebro efusivamente o aperto da malha tributária e a capacidade de pôr mais
gente a pagar impostos. Mas um sistema que só é inteligente para um dos lados é
aldrabão. Um aldrabão oficial, é certo. Mas um aldrabão, ainda assim
(Jornalista, colaborador do Publico, com a devida vénia)
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