O Parlamento não pode ser dissolvido até abril. Há
quem defenda uma revisão constitucional relâmpago para permitir o tira-teimas.
O que dizem os constitucionalistas? A regra de 82 ainda faz sentido?
A regra dos seis meses
O Presidente da República está
impedido pela Constituição de dissolver a Assembleia e de convocar eleições
antecipadas na reta final do seu mandato e nem o próximo Presidente o poderá
fazer no imediato porque o Parlamento não pode ser dissolvido nos primeiros
seis meses a contar da sua eleição. Para descalçar esta bota, há quem peça uma
revisão constitucional relâmpago. Mas vários constitucionalistas ouvidos pelo
Observador torcem o nariz a esta hipótese.A ideia foi lançada pelo socialista Álvaro Beleza, na
Rádio Renascença: a verificar-se a impossibilidade de Pedro Passos Coelho
governar e a recusa de Cavaco Silva em dar posse a um eventual Governo de
António Costa, o único passo possível seria dissolver o Parlamento e convocar
eleições antecipadas. O dirigente socialista propunha, por isso, uma revisão
constitucional relâmpago “para desbloquear isto”.
O que diz o artigo 172º da Constituição?
1. A Assembleia da República não pode ser dissolvida
nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do
Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado
de emergência.
2. A inobservância do disposto no número anterior
determina a inexistência jurídica do decreto de dissolução.
3. A dissolução da Assembleia não prejudica a
subsistência do mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão
Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
Ao Observador, Vital Moreira mostrou-se contra essa
solução e explicou porquê: “Retirar esse limite ao poder de dissolução
parlamentar do Presidente [o tal prazo de seis meses] equivaleria a reforçar
extraordinariamente o poder do Presidente da República de rejeitar soluções de
governo que lhe não agradem“.
Mais, acrescenta o constitucionalista: “Ora, sendo eu
partidário de um sistema de governo parlamentar mais genuíno, preferiria, ao
invés, eliminar o poder de livre dissolução parlamentar do Presidente. Sou
absolutamente contra o reforço dos poderes presidenciais em matéria de sistema
de governo“. Nesse sentido, explica Vital Moreira, “o PS não pode defender
posição diferente. Do mal, o menos. Se o Presidente da República tem um poder
próprio de dissolução parlamentar discricionário, ao menos que esse poder seja
temporalmente limitado“. Como explica Vital Moreira, o limite temporal para a
dissolução da Assembleia foi introduzido na revisão constitucional de 1982,
aprovada pela Aliança Democrática e pelo Partido Socialista. Mas já na primeira
versão da Constituição (1976), o “Presidente da República não podia dissolver a
Assembleia por efeito da rejeição do programa de governo, salvo no caso de três
rejeições sucessivas”. “O propósito era o mesmo”, continua Vital Moreira:
“Limitar o poder de dissolução parlamentar do Presidente da República
imediatamente a seguir a umas eleições parlamentares“.
No livro O Pecado Original, de Santana Lopes, o ex-primeiro-ministro
conta que “os grandes artífices da retirada desse poder ao Presidente da
República, na linha de Sá Carneiro, foram Mário Soares, Francisco Balsemão e
Diogo Freitas do Amaral”. Antes dessa revisão constitucional, “o Presidente da
República”, então Ramalho Eanes, “pôde nomear, em ano e meio, três
primeiros-ministros de formações diferentes – um tecnocrata, um político da
área do PSD e outro mais à esquerda. Os três Governos presidenciais tinham
várias ideologias, com uma característica comum: partida da iniciativa do
Presidente e não da expressão direta da vontade do povo. Neste contexto,
importa questionar: é esta a conceção de democracia? O povo ser governado por
um qualquer programa, desde que esteja no poder quem seja escolhido por César?“,
pergunta Santana Lopes.
“O Presidente deixava assim de ter o poder
discricionário de demitir o Governo, mas ficava com o poder de dissolver o
Parlamento”, ainda que temporalmente limitado, escreve o social-democrata. A
lógica era mesma: impedir que o Chefe de Estado impusesse a sua vontade ou cor
política ao país. Um pouco à imagem do que fizera François Mitterrand, em 1981,
quando no dia seguinte a tomar posse, dissolveu o Parlamento para o alinhar com
o Eliseu, como recorda um dos constitucionalistas ouvidos pelo Observador. É também por isso que Jorge Miranda, a par de Vital
Moreira, um dos pais da Constituição, se mostra “contra qualquer alteração ao
artigo 172 da Constituição“. No II Volume da Constituição Portuguesa Anotada,
que assina com Rui Medeiros, o constitucionalista explica que “a proibição de
dissolução nos seis meses posteriores à eleição destina-se não só a
salvaguardar um mínimo de tempo de funcionamento da Assembleia e a evitar a
constante repetição de eleições mas também a prevenir uma eventual pressão do
Presidente da Assembleia da República sobre o eleitorado no sentido de a
Assembleia a eleger vir a estar em sintonia com ele”. Já a norma que impede o Chefe de Estado de dissolver o
Parlamento nos últimos seis meses “repousa não tanto numa diminuição de
legitimidade na fase final do seu mandato, mas sim para impedir, entre outras
coisas, que o Presidente, “disposto a candidatar-se para segundo mandato,
procure, através da proximidade de ambas as eleições – a parlamentar e a
presidencial – uma coincidência de maioria, frustrando, assim, a separação
política de Presidente e Parlamento”.
Pedro Bacelar Vasconcelos afina pelo mesmo diapasão.
Ao Observador, o constitucionalista e deputado eleito pelo PS explica que esta
restrição temporal “visa impedir e combater eventuais tentações [do Chefe de
Estado] de contrariar os resultados das eleições” e de tentar “impor as suas
preferências”. Como tal, não faz sentido falar em revisão constitucional, diz
Bacelar Vasconcelos. O socialista lembra, também, que esse período mínimo
de funcionamento da Assembleia, mesmo numa situação de aparente bloqueio como
esta, obriga a que sejam procurados em sede parlamentar os devidos consensos.
“Essa é uma missão à qual a Assembleia da República não pode fugir. Essa obrigação
até sai reforçada“. Mas nem todos os constitucionalistas apoiam esta
leitura. Uma norma que foi pensada para equilibrar as forças acabou por
alimentar um bloqueio constitucional que ganha especial dimensão neste caso em
que Cavaco Silva não pode dissolver a Assembleia, nem tampouco parece estar
disposto a aceitar uma solução governativa à esquerda.
Mais: mesmo o próximo Presidente da República, que
toma posse em março, só poderá, se assim o entender, dissolver a Assembleia em
abril, quando se completam os primeiros seis meses de legislatura. Mas, de
acordo com a lei eleitoral, a ida às urnas só poderia acontecer dois meses
depois, em junho. A convocação de eleições antecipadas serviria, por
isso, de chave para resolver um impasse (se o PR optar por um Governo de gestão
depois do Executivo de Passos/Portas cair) ou para legitimar o futuro Governo.
A lógica de quem defende esta hipótese é uma: há alturas excecionais que
requerem medidas excecionais, como explicava, de resto, Álvaro Beleza
(Observador)
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