Começou a febre do futebol. Discute-se se Rui Vitória
tem estofo para o Benfica e se vai aguentar o balanço com duas doses de Jesus —
o treinador do Sporting e o seu duplo, o ex-treinador do Benfica. Numa época
que começa com mudanças na Liga e que promete novos enredos em redor da FPF,
nunca ligações rimaram tanto com traições. A queda de Luís Duque e a eleição de
Pedro Proença para a presidência da Liga fazem parte de um plano que foi (bem)
urdido com uma magna finalidade, do ponto de vista dos seus patrocinadores:
tomar de assalto a sede de poder do futebol português que é a Federação
Portuguesa de Futebol (FPF).
A saída de Fernando Gomes da SAD portista, há cerca de
cinco anos, em rutura com a política financeira defendida por Pinto da Costa,
pouco sensível à contenção que os tempos de crise já vinham a recomendar, deu
início a um novo ciclo de relações no quadro normativo da bola indígena. A
passagem de Fernando Gomes pela Liga, a durar apenas 18 meses, pode comparar-se
àqueles desafios de pré-época que as equipas fazem para se apresentarem ao
melhor nível nos chamados jogos a sério. O jogo a sério era — já naquele
momento — a presidência da FPF, e Luís Filipe Vieira percebeu que essa era a
via de contrariar o poder que o FC Porto havia construído nos últimos (largos)
anos.
Constituiu-se assim um eixo Benfica-FPF, à revelia das
lógicas celebradas no tempo em que o FC Porto dominava nas instituições e nos
órgãos decisórios, com o Sporting sem força para contrariar as dinâmicas
dominantes.
Através do impulso da Benfica TV, no sentido de
dificultar as principais vias de alimentação do poder do FC Porto e explorando
as tensões entre Pinto da Costa e Fernando Gomes, que conheceram um período de
tolerância e de não agressão até se agudizarem ao ponto de o presidente
portista considerar o seu ex-administrador como “um homem do basquetebol” (com
escassos saberes em relação ao desporto-rei), Vieira posicionou-se e beneficiou
de uma folga maior, conseguindo — também com ela — o bicampeonato, com muita
polémica em redor da arbitragem.
Foi o suficiente para Pinto da Costa perder
definitivamente a esperança de remissão de Fernando Gomes. Foi o suficiente
para Pinto da Costa reagrupar o seu ‘exército’ (conforme ilustração), com o seu
parceiro de sempre — nas horas boas e más — na linha da frente: Joaquim
Oliveira. O prestígio internacional e a carreira de gestor de Pedro Proença são
apenas credenciais de natureza propagandística que visam a decapitação da FPF
e, com ela, derrubar não apenas Fernando Gomes mas principalmente Vítor Pereira
— o homem da arbitragem.
A ARBITRAGEM — SEMPRE A ARBITRAGEM
A eleição de Pedro Proença para a presidência da Liga
é a prova de que os clubes, em Portugal, pensam pela cabeça da arbitragem. Um
ex-árbitro na liderança dos clubes pode parecer uma aberração, mas não deixa de
ser, afinal, a projeção real da mentalidade vigente no futebol português.
Os presidentes sonham com a arbitragem, deliram com a
arbitragem, amantizam-se com a arbitragem, e não há nada mais importante além
da arbitragem. Ela é voluptuosa, sexy, atraente, por isso todos a querem, todos
a cortejam, todos a cobiçam e desejam torná-la submissa.
Quando neste último mês de julho se discutiam as
virtualidades do sorteio dos árbitros, em oposição à clássica nomeação, um dos
argumentos dos opositores assentava no facto de não se encontrar na Europa
nenhum país que tivesse seguido esse caminho para designar os árbitros para
cada competição. As Federações e as Ligas protagonizam uma espécie de jogo de
espelhos em relação à UEFA. As diferenças é que umas são boas atrizes e outras
nem por isso. Mas o guião não permite grandes liberdades poéticas e muito menos
fugas ao diretório central. Na Europa, como acontece com as outras
Confederações espalhadas pelo Mundo, o passo tem de andar acertado, e aqueles
que, na parada, se revelarem mais alinhados (com a causa) podem ter prémio. O
prémio é poderem beneficiar das mordomias da UEFA. É curioso verificar, no
entanto, que os opositores ao sorteio já não usaram o mesmo argumento para
dizerem que também não há na Europa e, crê-se, no Mundo nenhum outro exemplo em
que o presidente da Liga é um ex-árbitro de futebol.
Houve árbitros de grande projeção internacional, como
foi o caso do italiano Pierluigi Collina e, mais recentemente, do inglês Howard
Webb, que, independentemente do seu valor como homens do apito, nunca foram
chamados a funções, nos seus países, como aquelas que Pedro Proença se propõe
agora desempenhar em Portugal.
Na verdade, não há nada que o proíba, mas a coisa mais
aproximada que tínhamos visto até hoje havia sido António Garrido e Carlos
Valente a prestarem serviços relevantes a clubes de futebol. Ou António Rola,
depois de uma carreira que ficou marcada por aquela chapliniana corrida à
frente dos jogadores do FC Porto, a fazer comentários na Benfica TV.
Não se sabe se foi excesso de competência, apenas
competência ou algo mais o que esteve na base da requisição dos serviços desses
ex-árbitros. O FC Gratidão tem alguns adeptos, mas não há registos de conversão
em sociedade anónima desportiva. É notório no notário.
Mesmo no sector, há muito poucos a compreender que a
arbitragem deve estar defendida de todo o tipo de vedetismo e de protagonismos.
Arbitrar deveria ser um exercício de discrição. Não é uma passagem de modelos.
Arbitrar é fazer cumprir as regras e as leis do jogo. E porque, em cada
refrega, o número de decisões difíceis a tomar pelos árbitros é relativamente
escasso, o objetivo deveria estar em reunir as melhores condições possíveis
para que essas decisões sejam corretas. E isso só é possível — toda a gente
percebeu, mas muitos fazem de conta que não é assim... — através do apoio do
vídeo. Não há volta a dar. Insistir na tese do erro humano e na comparação dos
erros do árbitro com os erros do defesa ou do ponta de lança ou com os erros
táticos do treinador é absurdo. Num tribunal, ninguém confunde os erros do juiz
com os erros de quem está a ser julgado. São coisas distintas. Misturá-las ou
confundi-las é uma estratégia daqueles que, mesmo quando são aqui e ali
prejudicados, se sentem confortáveis com o atual sistema.
Em Portugal, há muito o hábito de confundir a missão e
o desempenho dos árbitros com a missão e o desempenho de outros protagonistas e
agentes desportivos. É um erro conveniente e grave que se vê repetido na boca
de pessoas responsáveis do futebol, mesmo entre gente do sector da arbitragem, e
nos 4444 fóruns em que se discute futebol — os deputados da nação, por exemplo,
pelam-se por ir dar o seu ‘bitaite’ sobre futebol à televisão, porque acham que
é giro e porque, lá está, lhes dá popularidade junto do eleitorado. Um falhanço
de um ponta de lança, que de baliza aberta atira a bola ao lado, não pode ser
comparado, nunca, a um árbitro que valida um golo obtido com a mão. São
situações incomparáveis, mas nem o futebol nem o sector da arbitragem parecem
querer assumir um grau de maior exigência sobre os árbitros, principalmente
agora em que muitos deles se tornaram profissionais.
PINTO DA COSTA-OLIVEIRA REAGRUPAM O ‘EXÉRCITO’
Pedro Proença na liderança da Liga de Clubes é tão
estranho como seria bizarro, por exemplo, o juiz Carlos Alexandre aparecer de
repente como líder do Partido Socialista ou como presidente do Grupo Lena. Há
coisas que, não sendo formalmente incompatíveis, assumem foros de absoluta
incompatibilidade. Esta é uma delas.
O futebol tem este lado sui generis. Não é por acaso
que uma das frases mais fortes do léxico futebolístico pertence, também, a um
ex-árbitro, já falecido, Vítor Correia, que — para acentuar a sua não surpresa
perante as coisas que acontecem no futebol — soltou um dia a seguinte
expressão: “Desde que vi um porco a andar de bicicleta...”
Não deixa de ser curioso que, tendo recebido 32 votos
(58,2%) contra 23 (41,8%) de Luís Duque, o recém-eleito Pedro Proença tenha
obtido mais votos (12 entre 18) junto dos clubes da Liga 1 em comparação com os
clubes da Liga 2 (8 entre 19), aos quais havia feito a proposta mais concreta,
que ressaltava do ‘blablá’ do costume, isto é, assegurar um rendimento mínimo
garantido de 500 mil euros por ano.
Muito se falou de credibilidade — sempre a
cre-di-bi-li-da-de —, mas a maioria dos clubes da Liga 2 não acreditou na
credibilidade do isco.
Na Liga 1 conclui-se, portanto, que, à exceção de
Benfica, Sp. Braga, Belenenses, Boavista, Gil Vicente e Tondela, muitos dos
clubes que haviam prestado apoio a Luís Duque mudaram de opinião e centraram-se
no apoio a Proença.
As movimentações da última semana de julho foram
decisivas. Proença e Duque e as respetivas dinâmicas de comunicação
desdobraram-se em entrevistas e esclarecimentos, tudo em cima da hora para se
colher um efeito mais imediato e mais prático do halo das candidaturas.
Contudo, e mais uma vez, as declarações vitais foram as dos presidentes dos
três ‘grandes’ e, particularmente, as de Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira.
O presidente do Benfica declarou apoio a Duque no dia
16 de julho. Factual: Vieira e o Benfica sentem-se confortáveis com Fernando
Gomes e Vítor Pereira na FPF e satisfeitos com Duque na Liga.
Vieira tenta marcar posição:
Frase 1 — “Duque credibilizou a Liga, encontrou
soluções e envolveu os clubes”
Frase 2 — “Todos sabemos que há um ex-árbitro
[Proença] que há meses está a contactar presidentes de clubes da primeira e
segunda Ligas, tentando dividir. Há meses que Pedro Proença procura agendar um
encontro comigo, afirmando que quer concorrer à Liga”
Frase 3 — “Dos oito anos em que Vítor Pereira lidera a
arbitragem, só nos últimos dois é que não foi competente?”
Frase 4 — “Se voltarmos ao tempo de contar
espingardas, vamos retroceder anos e quem vai sair prejudicado é o futebol
português”
Fica claro em relação a Vieira e ao Benfica:
1 — Apoio a Luís Duque
2 — Crítica a Proença e denúncia da colagem ao FC
Porto
3 — Confirmação da preocupação de sempre: arbitragem
4 — Tentativa de não alteração do status quo,
com o argumento de que a estabilidade e as soluções
achadas democraticamente devem ser respeitadas
Pinto da Costa esperou 12 dias para tomar uma posição
pública e concedeu uma entrevista cujas ideias são conhecidas no próprio dia
das eleições:
Frase 1 — “Estive sempre com Luís Duque naquilo para o
qual ele foi convidado. […] Foi sugerido que precisávamos de um nome do futebol
para seis meses”
Frase 2 — “Convém não esquecer que o presidente do
Benfica fez um apelo a todos os clubes para se unirem em torno de Mário
Figueiredo. Não concordámos e partimos para um grupo de trabalho para tentar
viabilizar e credibilizar a Liga, a que depois se juntou o Benfica,
nomeadamente através de Domingos Soares de Oliveira”
Frase 3 — “É inconcebível querer defender-se um
indivíduo [Duque] que ostensivamente é uma afronta ao Sporting”
Frase 4 — “Quem conseguiu os patrocínios da NOS e dos
CTT foi Joaquim Oliveira. Luís Duque está a aproveitar-se”
Frase 5 — “É ele [Joaquim Oliveira] quem tem salvo os
clubes”
Frase 6 — “A minha grande esperança na vitória de
Pedro Proença não é organizar nem arranjar dinheiro para a Liga. O que
precisamos é de alguém com assento na Federação, com uma visão de negócio do
futebol profissional e não do negócio do futebol amador que pertence à FPF”
Fica claro em relação a Pinto da Costa e ao FC Porto:
1 — Duque era uma solução a prazo, sugerida pelo
Benfica, mas de transição
2 — Benfica mudou de posição ou não foi claro em
relação ao presidente cessante (Mário Figueiredo)
3 — Recuperação (estratégica e de conveniência) do
parceiro Sporting
4 — Recolocação de Joaquim Oliveira como um dos
grandes patronos do futebol profissional em Portugal
5 — Utilização de Pedro Proença como ponta de lança
dos clubes na Federação
Esta entrevista de Pinto da Costa é arrasadora.
Tremendamente clara, não deixando quaisquer dúvidas sobre estratégias e
objetivos. E, depois de a interpretar, e percebendo-se o resultado da votação,
não ficam dúvidas nenhumas: começou o ataque ao poder do Benfica na Federação.
O afastamento de Luís Duque da Liga é uma demonstração de poder de Pinto da
Costa e Joaquim Oliveira. As derrotas do FC Porto nos dois últimos campeonatos
causaram alguma mossa na imagem de Pinto da Costa, e as perdas de Joaquim
Oliveira na Sport TV (agora com 50%, através da Sportinveste) e na Global Media
Group, ex-Controlinveste (agora com 27,5%) provocaram desgaste na capacidade de
resposta do empresário nortenho. Mas, num país em crise, em que os
financiadores e os patrocinadores são sempre os mesmos, agora com o
condicionamento, o garrote e a queda dos Donos Disto Tudo, Pinto da Costa e
Joaquim Oliveira continuam a ter enorme peso. Com esta eleição de Pedro Proença
para a Liga podem não ter ganho a guerra (isso acontecerá se Proença ajudar a
derrubar Gomes e Pereira, na FPF), mas ganharam uma das mais importantes
batalha dos últimos tempos: a “Batalha da Constituição”.
BRAÇO DE FERRO — QUEM GANHA?
Imagine-se, agora numa batalha mais prosaica e
artesanal, uma mesa simples, com um tampo liso, nada de rococós, que isto na
bola é tudo à vontadinha, duas cadeiras, na mesma linha, em terreno neutro, sem
fazer rimar Olival com Seixal, e duas figuras sentadas nessas cadeiras, frente
a frente; de um lado, Jorge Nuno Pinto da Costa e, do outro, Luís Filipe
Vieira, os presidentes dos clubes que mais títulos têm arrecadado no futebol
português, em posição para (mais) um braço de ferro. Quem ganha? De um lado, os
aliados de Pinto da Costa, gente habituada a pelejas de todo o tipo, umas mais
tribais, tuberculares, apelando às manhas que são necessárias quando se
misturam terra e lama e os mais brutais caprichos da meteorologia, guerreiros
capazes de arrancar as veias e as vísceras aos adversários, e outras mais
palacianas, em grandes salões, dominados pelos granitos e pelas cerejeiras,
rendas e cristais, o grupo da canastra e do salamaleque, da bebida quente e
fria, da piada fácil e do gracejo perante a traiçãozinha do dia, o ritual de
sempre; do outro lado, os aliados de Luís Filipe Vieira, gente com menos treino
do corpo a corpo, muito inspirada pela força do estandarte e da história, com a
boa memória de conquistas feitas no tempo, a tentar compreender como se saram
as feridas de tanta batalha perdida, depois de um ciclo de batalhas ganhas
apenas com oposição sulista, reunindo as tropas e tirando conclusões sobre as
estratégias do principal inimigo, às vezes com a tentação de o imitar em vez de
o despistar.
O futebol não se ganha apenas no relvado, na
construção e na desconstrução das táticas, no lateral que sobe e no extremo que
desce, no trinco que ocupa espaço e reorganiza o grupo para lançar o contra-ataque
através de uma seta venenosa, no ponta de lança que baixa para receber o passe
ou para se livrar do central Arquimedes, o defesa flutuante, quase sempre mais
físico do que químico; o futebol começa a ganhar-se antes de os guerreiros
pisarem o campo de batalha, na capacidade de influenciar os regulamentos e as
decisões, na arte de colocar e desalojar, de mobilizar para depois crucificar,
num jogo subterrâneo, quase sempre sórdido, em que é preciso conhecer muito bem
as tampas de esgoto e as canalizações desse submundo da bola indígena.
O verbo ‘arbitrar’, então, só se conjuga na primeira
pessoa do singular — eu arbitro e, pronto, está resolvido; eu arbitro e, quando
arbitro, mesmo quando seja por um interposto árbitro, ganho.
É por isso que, cada vez que há eleições para a
Federação ou para a Liga, há uma concentração enorme não de motards em Faro nem
de árbitros com o apito na boca mas de uma quantidade inusitada de cigarras e
formigas que se reúnem assim a modos que no adro da feira, capazes de afinar
acordeões, gargarejar dois dedos de tinto (do garrafão) e comer uma sardinha.
Verão sem os ‘fungagás’ da bola, sem as tramas e os dramas, além das
transferências e outras demências, mesmo considerando os ventos e as marés, e
os pés nos areais queimados de tantos bacanais, não é verão não é nada. E a
malta gosta: gosta do frenesim e da balbúrdia, além dos mergulhos e dos
cardumes.
Foi o que aconteceu às portas de agosto: havia rumores
do avanço de Pedro Proença para uma candidatura à presidência da Liga, sabia-se
de algumas deslocações do ex-árbitro à Invicta, mas a confirmação da
candidatura só surgiu a menos de uma semana do ato eleitoral. E tudo o vento
mudou. É este jogo desconcertante, de aproximações e repelões, de gente amada
e, de repente, odiada, de beijos e solfejos, de punhais que fazem jorrar ‘ais’
dos corações, de traições logo transformadas em uniões e, de repente, em
conspirações, que faz do futebol a atividade que melhor revela o ser humano. Na
plenitude das suas emoções e dos seus esgares mais primários. É por tudo isto e
porque o Benfica tem um compromisso com a sua história, porque o FC Porto quer
recontar a história e porque o Sporting não quer sair da história que esta
época vai ser particularmente escaldante e exótica. Apertem os cintos. Dentro e
fora das quatro linhas. Preparem-se para ver Pinto da Costa, Luís Filipe
Vieira, Bruno de Carvalho, Jorge Jesus e Octávio Machado, provavelmente, como
nunca os viram. E preparem-se para ver o sector de arbitragem... a pegar fogo.
Os poderes ajustam-se e questionam-se. A vigilância aperta. Os ‘exércitos’, no
final, terão importantes baixas (texto originalmente publicado na edição de 15
de agosto da Revista E do Expresso, da autoria do jornalista Rui Santos, com a
devida vénia)
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