quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Os patrões do futebol

Começou a febre do futebol. Discute-se se Rui Vitória tem estofo para o Benfica e se vai aguentar o balanço com duas doses de Jesus — o treinador do Sporting e o seu duplo, o ex-treinador do Benfica. Numa época que começa com mudanças na Liga e que promete novos enredos em redor da FPF, nunca ligações rimaram tanto com traições. A queda de Luís Duque e a eleição de Pedro Proença para a presidência da Liga fazem parte de um plano que foi (bem) urdido com uma magna finalidade, do ponto de vista dos seus patrocinadores: tomar de assalto a sede de poder do futebol português que é a Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
A saída de Fernando Gomes da SAD portista, há cerca de cinco anos, em rutura com a política financeira defendida por Pinto da Costa, pouco sensível à contenção que os tempos de crise já vinham a recomendar, deu início a um novo ciclo de relações no quadro normativo da bola indígena. A passagem de Fernando Gomes pela Liga, a durar apenas 18 meses, pode comparar-se àqueles desafios de pré-época que as equipas fazem para se apresentarem ao melhor nível nos chamados jogos a sério. O jogo a sério era — já naquele momento — a presidência da FPF, e Luís Filipe Vieira percebeu que essa era a via de contrariar o poder que o FC Porto havia construído nos últimos (largos) anos.
Constituiu-se assim um eixo Benfica-FPF, à revelia das lógicas celebradas no tempo em que o FC Porto dominava nas instituições e nos órgãos decisórios, com o Sporting sem força para contrariar as dinâmicas dominantes.
Através do impulso da Benfica TV, no sentido de dificultar as principais vias de alimentação do poder do FC Porto e explorando as tensões entre Pinto da Costa e Fernando Gomes, que conheceram um período de tolerância e de não agressão até se agudizarem ao ponto de o presidente portista considerar o seu ex-administrador como “um homem do basquetebol” (com escassos saberes em relação ao desporto-rei), Vieira posicionou-se e beneficiou de uma folga maior, conseguindo — também com ela — o bicampeonato, com muita polémica em redor da arbitragem.
Foi o suficiente para Pinto da Costa perder definitivamente a esperança de remissão de Fernando Gomes. Foi o suficiente para Pinto da Costa reagrupar o seu ‘exército’ (conforme ilustração), com o seu parceiro de sempre — nas horas boas e más — na linha da frente: Joaquim Oliveira. O prestígio internacional e a carreira de gestor de Pedro Proença são apenas credenciais de natureza propagandística que visam a decapitação da FPF e, com ela, derrubar não apenas Fernando Gomes mas principalmente Vítor Pereira — o homem da arbitragem.
A ARBITRAGEM — SEMPRE A ARBITRAGEM
A eleição de Pedro Proença para a presidência da Liga é a prova de que os clubes, em Portugal, pensam pela cabeça da arbitragem. Um ex-árbitro na liderança dos clubes pode parecer uma aberração, mas não deixa de ser, afinal, a projeção real da mentalidade vigente no futebol português.
Os presidentes sonham com a arbitragem, deliram com a arbitragem, amantizam-se com a arbitragem, e não há nada mais importante além da arbitragem. Ela é voluptuosa, sexy, atraente, por isso todos a querem, todos a cortejam, todos a cobiçam e desejam torná-la submissa.
Quando neste último mês de julho se discutiam as virtualidades do sorteio dos árbitros, em oposição à clássica nomeação, um dos argumentos dos opositores assentava no facto de não se encontrar na Europa nenhum país que tivesse seguido esse caminho para designar os árbitros para cada competição. As Federações e as Ligas protagonizam uma espécie de jogo de espelhos em relação à UEFA. As diferenças é que umas são boas atrizes e outras nem por isso. Mas o guião não permite grandes liberdades poéticas e muito menos fugas ao diretório central. Na Europa, como acontece com as outras Confederações espalhadas pelo Mundo, o passo tem de andar acertado, e aqueles que, na parada, se revelarem mais alinhados (com a causa) podem ter prémio. O prémio é poderem beneficiar das mordomias da UEFA. É curioso verificar, no entanto, que os opositores ao sorteio já não usaram o mesmo argumento para dizerem que também não há na Europa e, crê-se, no Mundo nenhum outro exemplo em que o presidente da Liga é um ex-árbitro de futebol.
Houve árbitros de grande projeção internacional, como foi o caso do italiano Pierluigi Collina e, mais recentemente, do inglês Howard Webb, que, independentemente do seu valor como homens do apito, nunca foram chamados a funções, nos seus países, como aquelas que Pedro Proença se propõe agora desempenhar em Portugal.
Na verdade, não há nada que o proíba, mas a coisa mais aproximada que tínhamos visto até hoje havia sido António Garrido e Carlos Valente a prestarem serviços relevantes a clubes de futebol. Ou António Rola, depois de uma carreira que ficou marcada por aquela chapliniana corrida à frente dos jogadores do FC Porto, a fazer comentários na Benfica TV.
Não se sabe se foi excesso de competência, apenas competência ou algo mais o que esteve na base da requisição dos serviços desses ex-árbitros. O FC Gratidão tem alguns adeptos, mas não há registos de conversão em sociedade anónima desportiva. É notório no notário.
Mesmo no sector, há muito poucos a compreender que a arbitragem deve estar defendida de todo o tipo de vedetismo e de protagonismos. Arbitrar deveria ser um exercício de discrição. Não é uma passagem de modelos. Arbitrar é fazer cumprir as regras e as leis do jogo. E porque, em cada refrega, o número de decisões difíceis a tomar pelos árbitros é relativamente escasso, o objetivo deveria estar em reunir as melhores condições possíveis para que essas decisões sejam corretas. E isso só é possível — toda a gente percebeu, mas muitos fazem de conta que não é assim... — através do apoio do vídeo. Não há volta a dar. Insistir na tese do erro humano e na comparação dos erros do árbitro com os erros do defesa ou do ponta de lança ou com os erros táticos do treinador é absurdo. Num tribunal, ninguém confunde os erros do juiz com os erros de quem está a ser julgado. São coisas distintas. Misturá-las ou confundi-las é uma estratégia daqueles que, mesmo quando são aqui e ali prejudicados, se sentem confortáveis com o atual sistema.
Em Portugal, há muito o hábito de confundir a missão e o desempenho dos árbitros com a missão e o desempenho de outros protagonistas e agentes desportivos. É um erro conveniente e grave que se vê repetido na boca de pessoas responsáveis do futebol, mesmo entre gente do sector da arbitragem, e nos 4444 fóruns em que se discute futebol — os deputados da nação, por exemplo, pelam-se por ir dar o seu ‘bitaite’ sobre futebol à televisão, porque acham que é giro e porque, lá está, lhes dá popularidade junto do eleitorado. Um falhanço de um ponta de lança, que de baliza aberta atira a bola ao lado, não pode ser comparado, nunca, a um árbitro que valida um golo obtido com a mão. São situações incomparáveis, mas nem o futebol nem o sector da arbitragem parecem querer assumir um grau de maior exigência sobre os árbitros, principalmente agora em que muitos deles se tornaram profissionais.
PINTO DA COSTA-OLIVEIRA REAGRUPAM O ‘EXÉRCITO’
Pedro Proença na liderança da Liga de Clubes é tão estranho como seria bizarro, por exemplo, o juiz Carlos Alexandre aparecer de repente como líder do Partido Socialista ou como presidente do Grupo Lena. Há coisas que, não sendo formalmente incompatíveis, assumem foros de absoluta incompatibilidade. Esta é uma delas.
O futebol tem este lado sui generis. Não é por acaso que uma das frases mais fortes do léxico futebolístico pertence, também, a um ex-árbitro, já falecido, Vítor Correia, que — para acentuar a sua não surpresa perante as coisas que acontecem no futebol — soltou um dia a seguinte expressão: “Desde que vi um porco a andar de bicicleta...”
Não deixa de ser curioso que, tendo recebido 32 votos (58,2%) contra 23 (41,8%) de Luís Duque, o recém-eleito Pedro Proença tenha obtido mais votos (12 entre 18) junto dos clubes da Liga 1 em comparação com os clubes da Liga 2 (8 entre 19), aos quais havia feito a proposta mais concreta, que ressaltava do ‘blablá’ do costume, isto é, assegurar um rendimento mínimo garantido de 500 mil euros por ano.
Muito se falou de credibilidade — sempre a cre-di-bi-li-da-de —, mas a maioria dos clubes da Liga 2 não acreditou na credibilidade do isco.
Na Liga 1 conclui-se, portanto, que, à exceção de Benfica, Sp. Braga, Belenenses, Boavista, Gil Vicente e Tondela, muitos dos clubes que haviam prestado apoio a Luís Duque mudaram de opinião e centraram-se no apoio a Proença.
As movimentações da última semana de julho foram decisivas. Proença e Duque e as respetivas dinâmicas de comunicação desdobraram-se em entrevistas e esclarecimentos, tudo em cima da hora para se colher um efeito mais imediato e mais prático do halo das candidaturas. Contudo, e mais uma vez, as declarações vitais foram as dos presidentes dos três ‘grandes’ e, particularmente, as de Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira.
O presidente do Benfica declarou apoio a Duque no dia 16 de julho. Factual: Vieira e o Benfica sentem-se confortáveis com Fernando Gomes e Vítor Pereira na FPF e satisfeitos com Duque na Liga.
Vieira tenta marcar posição:
Frase 1 — “Duque credibilizou a Liga, encontrou soluções e envolveu os clubes”
Frase 2 — “Todos sabemos que há um ex-árbitro [Proença] que há meses está a contactar presidentes de clubes da primeira e segunda Ligas, tentando dividir. Há meses que Pedro Proença procura agendar um encontro comigo, afirmando que quer concorrer à Liga”
Frase 3 — “Dos oito anos em que Vítor Pereira lidera a arbitragem, só nos últimos dois é que não foi competente?”
Frase 4 — “Se voltarmos ao tempo de contar espingardas, vamos retroceder anos e quem vai sair prejudicado é o futebol português”
Fica claro em relação a Vieira e ao Benfica:
1 — Apoio a Luís Duque
2 — Crítica a Proença e denúncia da colagem ao FC Porto
3 — Confirmação da preocupação de sempre: arbitragem
4 — Tentativa de não alteração do status quo,
com o argumento de que a estabilidade e as soluções achadas democraticamente devem ser respeitadas
Pinto da Costa esperou 12 dias para tomar uma posição pública e concedeu uma entrevista cujas ideias são conhecidas no próprio dia das eleições:
Frase 1 — “Estive sempre com Luís Duque naquilo para o qual ele foi convidado. […] Foi sugerido que precisávamos de um nome do futebol para seis meses”
Frase 2 — “Convém não esquecer que o presidente do Benfica fez um apelo a todos os clubes para se unirem em torno de Mário Figueiredo. Não concordámos e partimos para um grupo de trabalho para tentar viabilizar e credibilizar a Liga, a que depois se juntou o Benfica, nomeadamente através de Domingos Soares de Oliveira”
Frase 3 — “É inconcebível querer defender-se um indivíduo [Duque] que ostensivamente é uma afronta ao Sporting”
Frase 4 — “Quem conseguiu os patrocínios da NOS e dos CTT foi Joaquim Oliveira. Luís Duque está a aproveitar-se”
Frase 5 — “É ele [Joaquim Oliveira] quem tem salvo os clubes”
Frase 6 — “A minha grande esperança na vitória de Pedro Proença não é organizar nem arranjar dinheiro para a Liga. O que precisamos é de alguém com assento na Federação, com uma visão de negócio do futebol profissional e não do negócio do futebol amador que pertence à FPF”
Fica claro em relação a Pinto da Costa e ao FC Porto:
1 — Duque era uma solução a prazo, sugerida pelo Benfica, mas de transição
2 — Benfica mudou de posição ou não foi claro em relação ao presidente cessante (Mário Figueiredo)
3 — Recuperação (estratégica e de conveniência) do parceiro Sporting
4 — Recolocação de Joaquim Oliveira como um dos grandes patronos do futebol profissional em Portugal
5 — Utilização de Pedro Proença como ponta de lança dos clubes na Federação
Esta entrevista de Pinto da Costa é arrasadora. Tremendamente clara, não deixando quaisquer dúvidas sobre estratégias e objetivos. E, depois de a interpretar, e percebendo-se o resultado da votação, não ficam dúvidas nenhumas: começou o ataque ao poder do Benfica na Federação. O afastamento de Luís Duque da Liga é uma demonstração de poder de Pinto da Costa e Joaquim Oliveira. As derrotas do FC Porto nos dois últimos campeonatos causaram alguma mossa na imagem de Pinto da Costa, e as perdas de Joaquim Oliveira na Sport TV (agora com 50%, através da Sportinveste) e na Global Media Group, ex-Controlinveste (agora com 27,5%) provocaram desgaste na capacidade de resposta do empresário nortenho. Mas, num país em crise, em que os financiadores e os patrocinadores são sempre os mesmos, agora com o condicionamento, o garrote e a queda dos Donos Disto Tudo, Pinto da Costa e Joaquim Oliveira continuam a ter enorme peso. Com esta eleição de Pedro Proença para a Liga podem não ter ganho a guerra (isso acontecerá se Proença ajudar a derrubar Gomes e Pereira, na FPF), mas ganharam uma das mais importantes batalha dos últimos tempos: a “Batalha da Constituição”.
BRAÇO DE FERRO — QUEM GANHA?
Imagine-se, agora numa batalha mais prosaica e artesanal, uma mesa simples, com um tampo liso, nada de rococós, que isto na bola é tudo à vontadinha, duas cadeiras, na mesma linha, em terreno neutro, sem fazer rimar Olival com Seixal, e duas figuras sentadas nessas cadeiras, frente a frente; de um lado, Jorge Nuno Pinto da Costa e, do outro, Luís Filipe Vieira, os presidentes dos clubes que mais títulos têm arrecadado no futebol português, em posição para (mais) um braço de ferro. Quem ganha? De um lado, os aliados de Pinto da Costa, gente habituada a pelejas de todo o tipo, umas mais tribais, tuberculares, apelando às manhas que são necessárias quando se misturam terra e lama e os mais brutais caprichos da meteorologia, guerreiros capazes de arrancar as veias e as vísceras aos adversários, e outras mais palacianas, em grandes salões, dominados pelos granitos e pelas cerejeiras, rendas e cristais, o grupo da canastra e do salamaleque, da bebida quente e fria, da piada fácil e do gracejo perante a traiçãozinha do dia, o ritual de sempre; do outro lado, os aliados de Luís Filipe Vieira, gente com menos treino do corpo a corpo, muito inspirada pela força do estandarte e da história, com a boa memória de conquistas feitas no tempo, a tentar compreender como se saram as feridas de tanta batalha perdida, depois de um ciclo de batalhas ganhas apenas com oposição sulista, reunindo as tropas e tirando conclusões sobre as estratégias do principal inimigo, às vezes com a tentação de o imitar em vez de o despistar.
O futebol não se ganha apenas no relvado, na construção e na desconstrução das táticas, no lateral que sobe e no extremo que desce, no trinco que ocupa espaço e reorganiza o grupo para lançar o contra-ataque através de uma seta venenosa, no ponta de lança que baixa para receber o passe ou para se livrar do central Arquimedes, o defesa flutuante, quase sempre mais físico do que químico; o futebol começa a ganhar-se antes de os guerreiros pisarem o campo de batalha, na capacidade de influenciar os regulamentos e as decisões, na arte de colocar e desalojar, de mobilizar para depois crucificar, num jogo subterrâneo, quase sempre sórdido, em que é preciso conhecer muito bem as tampas de esgoto e as canalizações desse submundo da bola indígena.
O verbo ‘arbitrar’, então, só se conjuga na primeira pessoa do singular — eu arbitro e, pronto, está resolvido; eu arbitro e, quando arbitro, mesmo quando seja por um interposto árbitro, ganho.
É por isso que, cada vez que há eleições para a Federação ou para a Liga, há uma concentração enorme não de motards em Faro nem de árbitros com o apito na boca mas de uma quantidade inusitada de cigarras e formigas que se reúnem assim a modos que no adro da feira, capazes de afinar acordeões, gargarejar dois dedos de tinto (do garrafão) e comer uma sardinha. Verão sem os ‘fungagás’ da bola, sem as tramas e os dramas, além das transferências e outras demências, mesmo considerando os ventos e as marés, e os pés nos areais queimados de tantos bacanais, não é verão não é nada. E a malta gosta: gosta do frenesim e da balbúrdia, além dos mergulhos e dos cardumes.

Foi o que aconteceu às portas de agosto: havia rumores do avanço de Pedro Proença para uma candidatura à presidência da Liga, sabia-se de algumas deslocações do ex-árbitro à Invicta, mas a confirmação da candidatura só surgiu a menos de uma semana do ato eleitoral. E tudo o vento mudou. É este jogo desconcertante, de aproximações e repelões, de gente amada e, de repente, odiada, de beijos e solfejos, de punhais que fazem jorrar ‘ais’ dos corações, de traições logo transformadas em uniões e, de repente, em conspirações, que faz do futebol a atividade que melhor revela o ser humano. Na plenitude das suas emoções e dos seus esgares mais primários. É por tudo isto e porque o Benfica tem um compromisso com a sua história, porque o FC Porto quer recontar a história e porque o Sporting não quer sair da história que esta época vai ser particularmente escaldante e exótica. Apertem os cintos. Dentro e fora das quatro linhas. Preparem-se para ver Pinto da Costa, Luís Filipe Vieira, Bruno de Carvalho, Jorge Jesus e Octávio Machado, provavelmente, como nunca os viram. E preparem-se para ver o sector de arbitragem... a pegar fogo. Os poderes ajustam-se e questionam-se. A vigilância aperta. Os ‘exércitos’, no final, terão importantes baixas (texto originalmente publicado na edição de 15 de agosto da Revista E do Expresso, da autoria do jornalista Rui Santos, com a devida vénia)

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