A semana passada o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem tomou uma decisão que pode abrir um precedente que vai mudar, totalmente,
a relação empregado/empregador no que à privacidade dos dados diz respeito. A história reza assim: um engenheiro romeno usou a
conta de chat da empresa para trocar mensagens pessoais. Uma conta que a
empresa tinha criado para ser o canal de esclarecimento de dúvidas dos
clientes. Uma monitorização da atividade dessa conta feita pela empresa apurou
que o engenheiro a utilizava também para trocar mensagens pessoais.
Nomeadamente com a noiva.
Como é que sabemos isto? Porque ele foi despedido em
2007 por estar, alegadamente, a fazer utilização imprópria das ferramentas de
trabalho e as mensagens foram usadas como prova em tribunal. Basicamente,
aproveitava as horas de trabalho para, também, estar na conversa com os amigos
usando um chat que a empresa tinha criado com um propósito bem definido. Ora
bem: o “alegadamente” passou a “efetivamente” quando, em 2007, um tribunal
romeno deu razão à empresa. O engenheiro não desistiu e escalou o caso para as
entidades europeias. Não é só em Portugal que a justiça é lenta. Foi preciso
esperar vários anos para ver o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem dar razão
à empresa e deixar Bogdan Mihai Barbulescu (o engenheiro em questão) com um
despedimento por justa causa nas mãos.
EMPREGADORES RECLAMAM DIREITO A VER CONTEÚDOS
Como seria de esperar, esta sentença provocou alguma
celeuma. Os empregados temem a violação “legal” da privacidade dos seus dados.
Os empregadores reclamam o direito de poder ver os conteúdos que são trocados
pelos empregados quando estes usam ferramentas e canais criados para utilização
profissional. Mas há mais. A entrada massiva da tecnologia no ambiente de
trabalho criou uma tendência (leia-se: oportunidade de negócio) que vai valer,
segundo a Business Wire, mais de 360 mil milhões de dólares em 2020. Falo do
BYOD, Bring Your Own Device. Que é como quem diz: “funcionários, tragam os
vossos telefones e tablets e usem-nos dentro da empresa.”
A entrada massiva de dispositivos particulares em
ambiente profissional tem pontos positivos e negativos. As empresas gostam
porque os funcionários podem trabalhar a qualquer momento e em qualquer lugar.
Os funcionários gostam pelo conforto de poderem usar os seus próprios dispositivos
para, por exemplo, ver o mail ou fazer alterações num powerpoint. Isto é o que
vemos à superfície. O que faz movimentar os tais milhões já referidos é o
investimento necessário para tornar todos estes sistemas compatíveis e,
essencialmente, seguros. É preciso não esquecer que durante décadas, a
principal preocupação dos diretores de informática (hoje transformados em CTO)
foi a de blindar as redes da empresa. Condição última para manter protegida a
informação do negócio. Hoje essa premissa continua a ser vital, mas mais
complexa, porque há centenas de novos equipamentos que têm a porta aberta para
essas redes sagradas. É fácil ver a problemática: é cada vez mais ténue a
fronteira entre o que é informação privada e informação pública em ambiente de trabalho.
Ou seja, já não é a questão de estar a usar o computador ou o telefone da
empresa. A partir do momento em que é utilizado o telefone pessoal para ver
e-mail, fazer uma chamada de Skype ou usar o WhatsApp da empresa para responder
a um cliente… torna-se muito complicado saber onde começa o trabalho e inicia o
lazer.
CARTAS NA MESA ANTES DO JOGO COMEÇAR
Em Portugal, as fronteiras estão bem definidas. Por
lei, a entidade patronal não pode ler o conteúdo do e-mail do funcionário. No
máximo, pode consultar o assunto. Mais que isso e estará a cometer um crime de
violação de privacidade. E sobre o chat? Não sei, mas as premissas devem
manter-se as mesmas. E no caso romeno estamos perante a violação de privacidade
de mensagens de chat. Ou seja, de uma conversa que pode ter ocorrido em tempo
real. A conta do Yahoo Messenger (o serviço de chat em questão) foi criada pelo
funcionário a pedido da empresa com o objetivo de prestar apoio a clientes. A
empresa avisou os funcionários que todas as comunicações através daquela
ferramenta de chat seriam, obrigatoriamente, profissionais. Algo que o
engenheiro afirmava ter respeitado, até ser confrontado em tribunal com as
transcrições das conversas pessoais. Quer isto dizer que as cartas estavam
todas na mesa antes do jogo começar. As regras é que não foram respeitadas pelo
funcionário. O caso parece-me claro e com desfecho adequado.
O que me preocupa são as conclusões do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, onde se pode ler esta pérola: “é razoável que a
entidade patronal queira verificar que os seus empregados cumprem as suas
tarefas profissionais durante o seu horário de trabalho”. Esta frase é
demasiado aberta e, por isso, alvo das mais variadas interpretações. Mesmo
sabendo que a decisão judicial se aplica a comunicação via chat, o que poderá
acontecer se entidades empregadoras utilizarem esta sentença para monitorizar o
Facebook Messenger dos funcionários, o WhatsApp ou, por exemplo, o Skype? É que
todas estas apps podem ser usadas tanto em ambiente profissional quanto no
pessoal. Como é que se estabelece uma fronteira honesta e sólida entre estes
dois mundos, agora que eles estão completamente misturados?
A sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
pode, espero, servir de gatilho para a criação de nova legislação mais adaptada
aos tempos que vivemos e, essencialmente, mais respeitadora dos direitos de
ambos: empregado e empregador. Mas, como sempre nestas coisas, haveremos de
continuar a assistir a abusos frequentes de ambas as partes até ao dia - porque
isto da tecnologia dá muitas voltas para às vezes acabar no mesmo sítio - em
que voltaremos a assistir ao encerramento das fronteiras digitais que permitem
esta confusão. Ou seja, ao reerguer das barreiras que protegiam as redes
empresariais e mantinham a utilização privada longe das suas portas. Claro que,
nesse dia, vai ser ensurdecedor o coro de lamentos dos milhões de funcionários
que já não poderão usar os seus queridos dispositivos para aceder às
ferramentas profissionais (Expresso)
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