Um ano depois da prisão
na Portela e vinte sete meses depois do início, o que é o Caso Sócrates?
Depende muito para o que se olha e, sobretudo, das expectativas criadas. Há um
ano era praticamente impossível adivinhar em que ponto estaria o caso quando
tivessem passado doze meses. E se é fácil concluir que o ex-primeiro-ministro
está em maus lençóis, também é óbvio que a Justiça continua a ter um enorme
desafio pela frente, com vários prazos a ser ultrapassados e sem qualquer data
para a acusação
Ricardo Costa
1. O CASO....
Não deve haver muitos
portugueses que não tenham uma opinião formada sobre José Sócrates. Normalmente
essa opinião é extremada, seja contra ou a favor. O estilo abrasivo e
provocador do ex-primeiro-ministro foi sempre um ótimo catalisador de ódios e
paixões. Foi assim no poder, foi assim no regresso de Paris e nos comentários
televisivos, está a ser assim na gestão do seu caso judicial, o momento mais
difícil da sua vida e que ainda está numa fase inicial. É, assim, normal que a
Operação Marquês seja quase sempre vista de forma apaixonada.
Esta não é a melhor forma
- nunca foi, aliás -, de olhar para um processo judicial. As convicções de
inocência ou culpabilidade interessam pouco numa acusação e nada num tribunal.
Mais, muitas das coisas faladas, discutidas e noticiadas ao longo de um ano
foram saindo do processo e algumas que ainda lá estão podem não vir a estar na
acusação. E o que interessa para o caso Sócrates é o que estiver na acusação. É
por isso que o adiamento da data da produção da acusação obriga a esperar para
se perceber a verdadeira solidez do processo, claramente muito mais documentado
no que pode configurar fraude fiscal e/ou branqueamento de capitais do que no
alegado crime de corrupção.
Neste momento, apesar de
ainda estar muita coisa a correr, é praticamente impossível que José Sócrates e
outros arguidos não venham a ser acusados de fraude fiscal qualificada, um
crime que pode implicar pena de prisão até cinco anos. Da mesma forma, e
havendo muita circulação de dinheiro por contas na Suíça e offsohres, é
altamente provável que não escapem à acusação de branqueamento de capitais. O
ponto mais difícil - e mais frágil - é, neste momento, a corrupção, um crime
mais grave, mas muitas vezes difícil de acusar.
Tendo em conta tudo o que
se foi sabendo ao longo deste ano, é na frente da corrupção que tudo está menos
sólido ou, pelo menos, mais alterado face às informações iniciais. Dos negócios
na Venezuela e na Líbia, dos encontros arranjados nas Nações Unidas para
contrapartidas em Angola, entre outras coisas, passámos a Vale de Lobo. O resto
aparentemente desapareceu. Não se trata de ser um caso mais ou menos sólido,
mas de ser uma coisa diferente do inicial. E não estando em causa o licenciamento,
muito anterior, de Vale de Lobo ou mesmo ou mesmo o ordenamento do território,
também ele anterior, o que parece estar em xeque é o financiamento.
Tecnicamente, segundo as últimas alterações à lei, uma decisão de um gestor da
Caixa Geral de Depósitos pode configurar corrupção, já que o banco é detido a
100% pelo Estado. E a corrupção só se aplica a interesses ou decisores do
Estado. Esse é simultaneamente, o ponto menos sólido e o mais interessante do
caso, porque há muito poucos casos de corrupção julgados em Portugal e nenhum
com contornos semelhantes, cruzando um financiamento bancário. Só por isto já,
já seria histórico. Envolvendo um ex-primeiro-ministro é ainda mais relevante.
2. A ESPERANÇA DA DEFESA
A posição da defesa tem
sido mais desconcertante que eficaz. Mas nos últimos meses ninguém pode dizer
que João Araújo não conseguiu várias vitórias. A mais óbvia foi a saída de José
Sócrates da prisão, mas muitas frases da decisão da Relação, protagonizada por
Rui Rangel, são extremamente duras para a acusação, sobretudo para a aparente
fragilidade de algumas provas, para o exercício contínuo de dedução e para
existência de prova indireta.
Esta questão não é nova
na nossa justiça, nem sequer em casos deste género. No Face Oculta, que
implicou um sucateiro e Armando Vara, entre outros, toda a primeira parte da
sentença faz a defesa da prova indireta e da dedução como sendo fundamentais a
que se faça justiça neste tipo de casos. Este tema divide os juristas, porque
obriga o direito penal a pisar terrenos muito menos sólidos ou tangíveis. Mas,
como sabemos, não foi isso que impediu o coletivo de juízes do caso Face Oculta
de decidir aplicar penas extremamente duras: dezoito anos para Manuel Godinho e
cinco para Armando Vara, por exemplo.
O balanço dos vários
recursos apresentados pela defesa é negativo, mas ainda assim, teve algumas
vitórias que abalaram a imagem da investigação. Nesse ponto, a questão dos
prazos é a mais importante. Passaram vinte sete meses sobre o início de uma
investigação, oficialmente aberta em julho de 2013. São mais de dois anos e o
prazo do inquérito terminou oficialmente a 19 de outubro. O prazo pode ser
prorrogado a pedido da acusação, mas a defesa aproveitará sempre para repetir
que “deixar esgotar um prazo de inquérito sem acusar ou arquivar é um escândalo
e uma vergonha para a justiça”, como referiu João Araújo.
A esperança da defesa é
exatamente esta: a de que a acusação queira estender os prazos a tal ponto que
o DCIAP não permita e obrigue o procurador a finalizar o caso. A tensão sobre
os prazos necessários a concluir o caso é evidente entre a Autoridade
Tributária e o Ministério Público. Qualquer dissonância entre as duas partes
pode eventualmente fragilizar o processo. Mas, no fundo, a defesa pouco pode
fazer além de esperar e de aproveitar qualquer falha ou novo prazo para
recorrer e, assim, ir condicionando uma acusação que parece sempre precisar de
mais tempo.
3. A FORÇA DA ACUSAÇÃO
Se o ponto fraco da
acusação é claramente o tempo, com prazos esgotados e sem fim à vista, a
solidez assenta na longa coleção de prova. O caso, recorde-se, começou em julho
de 2013 e teve nove meses de escutas telefónicas antes da detenção de José
Sócrates e de outros arguidos. Os números são impressionantes na sua extensão:
50 mil conversas escutadas, 190 volumes de apensos bancários, 2 mil documentos
apreendidos, mais de cem buscas e 5,5 milhões de ficheiros informáticos. O
outro lado desta moeda é que muitos ficheiros ainda não foram analisados nem
todas as escutas estão transcritas. E é aí que voltamos ao tempo, fazendo
imediatamente lembrar o Caso Freeport, que andou e andou a ter ser fechado à
pressa por... falta de tempo.
Mas o tempo e arrastar do
caso são mesmo as únicas semelhanças com o Freeport, que assentava muito em
dedução e nunca conseguiu seguir qualquer rasto financeiro além dos alegados
intermediários. Este caso, até por ter começado numa investigação tributária,
está incrivelmente documentado e segue o rasto de milhares de movimentações
financeiras com extremo detalhe do princípio ao fim. Basta recordar que a
Operação Marquês decorre do caso Monte Branco (o do Zé das Medalhas, ou José
Canas, que tinha uma casa de câmbios na Baixa de Lisboa) para percebermos que
tudo aqui é diferente. Casos como o de Duarte Lima ou de Ricardo Salgado com a
Akoya começaram exatamente da mesma maneira.
O fio da meada começa na
utilização do Zé das Medalhas e no recurso ao regime extraordinário de
repatriação de capitais (o RERT) por Carlos Santos Silva. Isso dá uma solidez
aos indícios muito própria das investigações financeiras ou tributárias e muito
menos habitual em boa parte dos processos-crime. Mas esse fio foi sendo
desfiado e a meada que apareceu era maior que o esperado. Foi assim que a
Operação Marquês foi engrossando nos alvos e nos objetivos.
Este é seguramente o
maior caso das vidas do procurador Jorge Rosário Teixeira ou do inspetor
tributário Paulo Silva, mas isso não os põe de acordo em tudo. Paulo Silva
queria estender a acusação para setembro de 2016, Rosário Teixeira tem que
apresentar um relatório em 11 de dezembro a fixar a data de encerramento do
inquérito.
O que fica por fazer
entre o prazo de um e o desejado por outro? Não sabemos. O que vamos ver é
apenas o que fizer parte do inquérito, menos do que queriam, mas provavelmente
o suficiente para se avançar com uma acusação inédita a um
ex-primeiro-ministro. Depois disso ainda falta muita coisa até um julgamento.
4.O HOMEM POLÍTICO
Se há coisa que nunca
mudou nas várias fases do processo, é o estilo de José Sócrates. Enquanto esteve
preso preventivamente nunca hesitou em desafiar a Justiça e pôr em causa a
arbitrariedade das decisões que o afetaram e da investigação em que foi
envolvido. Da fraqueza da prova ao abuso dos prazos, da dedução excessiva à
cobardia das escutas, nada escapou. Quando saiu da prisão, o rumo continuou. Já
fez duas conferências e esta semana participa num almoço. Usa o que aprendeu
sobre filosofia política para discursar sobre o Estado de Direito e os seus
abusos, o que distingue uma Justiça independente de processos políticos e por
aí fora. Pelo meio, claro, comenta a atualidade política.
José Sócrates foi, é e
será um político e dificilmente deixa de agir como tal. A forma como comunica
ou gere a agenda vem daí, bem como as persistência. Mas também um estilo próprio
de quem viveu muito tempo numa bolha em que os titulares de órgãos políticos
muitas vezes se enfiam, perdendo o contacto com a realidade.
Há quem aposte (e quem
queira) que José Sócrates regresse formalmente à política. Há quem até avente
uma candidatura presidencial... Mas embora o ex-primeiro-ministro esteja na
posse de todos os seus direitos políticos, como ele gosta de lembrar, é
praticamente impossível que alguém que tenha um caso tão pesado às costas
consiga estar, em simultâneo, na política. Até porque neste caso não se trata
de se saber se vai ou não ser acusado, mas apenas do quê e quando. E no momento
em que a acusação for proferida, começa uma nova batalha, muito mais longa e
dura e com julgamento no fim.
Se contarmos com as
eventuais decisões judiciais e respetivos recursos, seja ou não condenado, este
será sempre um caso para muitos anos, estando, assim, muito longe o dia em que
José Sócrates se pode considerar livre do processo. A ideia de um regresso à
política, não sendo impossível, é, assim, altamente improvável por bastante
tempo. Mas a sua presença política é, ao mesmo tempo, muito provável, nem que
seja na mesma linha de intervenção que recentemente tem feito.
5.FUTURO
Tudo depende do tempo e
dos prazos. Até ao dia 11 de dezembro saberemos qual é a data fixada para o
final do inquérito. Não será seguramente este ano, mas falta saber de que mês
de 2016 estamos a falar. Até lá é esperar, ver o que faz a investigação e como
responde a defesa a qualquer nova diligência ou prazo esgotado. Será um jogo de
nervos até essa data, com a defesa a querer demonstrar que todo o caso é “uma
mão cheia de nada” e acusação a tentar construir um processo blindado. Vinte
sete meses, 50 mil escutas e cem buscas depois, estamos assim. Daqui por uns
meses, coma acusação, é que podemos perceber o que fica disto tudo.
SERÁ O “ANIMAL FEROZ”
JULGADO POR CORRUPÇÃO?
Armando Vara, Helder
Bataglia, Joaquim Barroca e o caso Vale do Lobo. Sócrates preso, Sócrates solto
- Sócrates acusado? E julgado?
Durante um ano e meio, o
Ministério Público seguiu de perto os passos de José Sócrates e identificou, ao
longo desse tempo, 40 entregas em dinheiro com origem no empresário Carlos
Santos Silva.
Indiciado por corrupção,
fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais, o ex-primeiro-ministro é
o principal arguido de uma investigação que foi aberta oficialmente pelo
Ministério Público no verão de 2013 e que levou à sua detenção, a 21 de
novembro de 2014, à chegada ao aeroporto de Lisboa, ao desembarcar num voo
vindo de Paris. Este vídeo é a última de
três partes sobre a Operação Marquês, um ano depois da prisão de José Sócrates (Expresso)
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